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Concepção e realização impressionantes -- verdadeira façanha. Parabéns a todos!

José Roberto O’Shea

Um espetáculo artístico- filosófico. Como misturar ópera e rock? Como ligar Mary Shelley a Goethe, Nietzsche e Borges, obtendo um resultado magnífico? Isso é o que Frankenstein de Alberto Heller nos mostra! A ópera rock Frankenstein é um banquete para os sentidos. Encanta os olhos e ouvidos com seus belos cenários, figurinos e sua música. É um palco para a virtuose lírica das belas vozes de Masami Ganev e Carla Domingues, que dialogam com vozes experimentadas no rock, como a de Alirio Neto. O espetáculo não se limita, contudo, aos sentidos, mas é tecido com conceitos, revelando a formação filosófica do compositor e diretor Alberto Heller. Referências literárias e filosóficas nos levam à reflexão sobre o sentido da vida e da morte. A biblioteca de Borges, o abismo de Nieztsche e o derradeiro "Mehr Licht" de Goethe, entre muitas outras referências, fazem dessa ópera também uma reflexão sobre os grandes momentos do pensamento ocidental.

Maria Borges

Sobre a

ópera-rock FRANKENSTEIN

por Alberto Heller

Apresentação

 

Creio que foi entre 2012 e 2013: o maestro Jeferson Della Rocca me sugeriu a composição de uma obra que mesclasse ópera e rock, e confesso que naquele momento não me veio nenhuma ideia. Mas ela foi se formando e amadurecendo, e no final de 2016 finalmente senti que encontrara a linguagem e o estilo apropriados para essa obra. Mas qual tema escolher? Após meses de muita pesquisa, finalmente me decidi: FRANKENSTEIN, da escritora britânica Mary Shelley. Essa decisão se deu a partir do LIVRO, não de suas muitas adaptações cinematográficas, que invariavelmente tendem ao gênero do terror. Quem já leu o original sabe: não se trata disso. Gosto muito do gênero terror na literatura e no cinema, mas me encantei com a ideia de resgatar esse aspecto trágico-filosófico do livro. O romance de Shelley é antes de tudo um drama existencial, uma tragédia no sentido mais profundo do termo.

 

Durante os primeiros meses de 2017 me dediquei à escrita do libreto, e os meses subsequentes à composição. A obra que ao final surgiu é uma ópera-rock em dois atos para solistas, coro masculino, banda e orquestra sinfônica, com duas horas de duração (cantada em inglês e com legendas em português – aproveitando assim a sonoridade e o timbre da língua na qual a história foi originalmente pensada e escrita). Dado seu estilo e características musicais, a composição se aproxima muito mais da ópera clássica que do musical; a orquestração é densa, e o elemento rock não diminui em nada sua altíssima carga dramática.

 

Uma feliz coincidência: no ano de 2018 o livro de Mary Shelley comemorou exatos 200 anos desde sua publicação. E seus temas continuam absolutamente atuais: a relação complexa entre criador e criatura, os limites éticos nas pesquisas científicas (discussão que se estende desde a clonagem até as células-tronco, passando ainda pela robótica e pela inteligência artificial), as ambiguidades e os conflitos da natureza humana, o sentido da existência (quem somos, de onde viemos, para onde vamos), a relatividade do bem e do mal, o mistério da vida e da morte, as dificuldades frente à diferença e à alteridade.

Frankenstein e sua criatura: os duplos

 

Ao pensar no nome Frankenstein, invariavelmente somos remetidos à imagem icônica de Boris Karloff com parafusos no pescoço. Na verdade, em momento algum do livro de Mary Shelley a Criatura recebe um nome – e isso diz muito sobre seus conflitos existenciais e sua busca por uma identidade (quem sou? de onde vim? quem me criou? qual o meu propósito? por que fui abandonado por aquele que me criou? tenho um pai? de quem sou semelhante?). A confusão de nomes entre o criador – Victor Frankenstein ­ – e sua criatura é um ato falho significativo e da maior relevância, e nos remete a um dos temas mais caros ao Romantismo do século XIX: o duplo. Mary Shelley explora essa duplicidade em quase todos os personagens do livro, criando ambiguidades riquíssimas – e aqui ela se faz tributária da literatura fantástica: o gosto pelo imaginativo, o fantasioso, o curioso, o assustador. Se o Iluminismo se interessou pelas luzes da razão, o Romantismo olhou para as sombras, para a noite, para aquilo que estaria além ou aquém do alcance dessas luzes: as fronteiras tênues entre imaginação e realidade, sonho e vigília, eu e não-eu – questões que, desde Hamlet, também nos remetem ao delírio, à loucura, à possível perda da sanidade. Viver é estar imerso nesses conflitos, nessas dúvidas – e a Criatura está viva: pergunta, questiona, sofre. Assim como seu criador. Buscam-se um no outro, espelham-se um no outro, desejam e ao mesmo tempo temem um ao outro; atraem-se e repelem-se, amam-se e odeiam-se, pedem e negam, dão vida e destroem. Perseguem-se até o Polo Norte: a busca pelo encontro, o encontro impossível.

Viagem ao Polo Norte: o Capitão Robert Walton

 

Embora a trama do livro (e da ópera) FRANKENSTEIN gire e se concentre em torno do embate entre suas figuras centrais, o Dr. Victor Frankenstein e sua Criatura, há na história um personagem extremamente emblemático e importante: o Capitão Robert Walton. A história começa com ele e sua tripulação num navio em pleno Ártico, em busca de uma passagem pelo Polo Norte. A situação é tensa: cercados de gelo e perigo, a tripulação está prestes a amotinar-se e insiste continuamente pela volta, ao invés de prosseguir nessa excursão suicida. Mas o Capitão está obcecado e não quer abrir mão de seus sonhos de conquistas e glórias. Acabam encalhando em meio às geleiras e lá, para a enorme surpresa de todos, encontram e resgatam um moribundo semicongelado; descobre-se que ele é Victor Frankenstein, que em perseguição a uma criatura (a qual ele chama de demônio) acabou chegando aos confins do planeta. Indagado, começa a relatar sua história – história que, na cena final da ópera, retorna a esse momento de conflagração no gelo. O Capitão, por sua vez, reconta essa história através de cartas à sua irmã, Margaret Walton Saville (mesmas iniciais da autora, Mary Wollstonecraft Shelley). Histórias dentro de histórias dentro de histórias: um labirinto de duplos e referências cruzadas; um conto que começa e termina em meio a um gelo desértico e temperaturas extremas (um inferno branco), centro de convergência de três destinos e jornadas igualmente extremas e dramáticas. A busca pelo inalcançável – ou pior: encontro que, quando finalmente obtido, revela-se a antítese do sonho: pesadelo.

 

À medida em que Victor relata sua história, Robert Walton percebe a ressonância com sua própria trajetória: o desejo de conquista, glória, fama, mesmo que às custas dos maiores sacrifícios. Ambos se encontram e se afeiçoam um ao outro no mais improvável cenário e em meio a circunstâncias inimagináveis; uma curta amizade, pois a vida de Victor está se esvaindo. Enquanto isso, a pressão por parte da tripulação não para de crescer: exigem que o navio retorne. O gelo começa a derreter e o navio se solta; e agora, como proceder? Prosseguir ou retornar? Haverá um “ponto de não-retorno”?

A simbologia dos nomes

 

No livro ‘Frankenstein’ de Mary Shelley os nomes das personagens muitas vezes são carregados de simbologia, a começar pelo do protagonista, o estudante de medicina Victor Frankenstein: ‘Victor’ remete a vitória – e essa é sua grande ambição: vencer a morte (após o profundo trauma de ter perdido a mãe quando criança). Todos os seus estudos e suas pesquisas (nos campos da medicina, da eletricidade, do galvanismo, da química – e da alquimia) visam esse desejo de conquista e domínio, tornando-se quase uma obsessão. O elemento alquímico aparece, de forma mais velada, no próprio sobrenome Frankenstein, que em alemão pode ser traduzido como Pedra (Stein) dos Francos (Franken) – alusão à pedra filosofal?

 

A presença do idioma alemão é forte no livro; Victor sai de Genebra para estudar na universidade de Ingolstadt, na Alemanha (cidade onde teria nascido o movimento dos Illuminati); nessa universidade Victor visita as aulas de dois professores: Prof. Krempe (acadêmico tradicionalista e retrógrado, contrário a qualquer coisa que fuja à razão científica) e Prof. Waldman (professor de química interessado em estudos não aceitos pelo meio acadêmico, como por exemplo a alquimia). Em alemão, Krempe se associa fonicamente a Krampf (cãibra) e verkrampft, adjetivo que pode significar alguém tenso, rígido, inflexível (alusão, portanto, à postura engessada e cética do meio acadêmico), enquanto Waldman (Wald: floresta; Man: homem) remete ao conhecimento gnóstico, à sabedoria da terra: misticismo, esoterismo, sincretismo religioso.

 

Já Justine, amiga da família Frankenstein que é injustamente acusada de assassinato e levada à forca, nos remete à justiça: a justiça que falha, que é pedida mas não recebida. Elisabeth vem do hebraico Elishebba, que significa “Deus é juramento” (a dimensão religiosa e teológica em Frankenstein é fortíssima): juramentos feitos e não cumpridos, expectativas burladas, anjos caídos, paraísos perdidos. O Capitão Robert Walton; Robert, cujo significado é "aquele que brilha na glória", "fama brilhante" ou "brilhante na glória", enquanto o sobrenome Walton remete ao alemão walten: reinar, dominar, governar (não por acaso, ele e Victor se identificam e se afeiçoam um ao outro). Agatha, do grego agathos: pessoa boa, respeitável, virtuosa.

 

E temos finalmente a criatura: o único personagem que não recebe nome – e isso é extremamente significativo. Não tendo nome, qual sua identidade? Qual sua filiação? Qual sua história? Eis sua jornada: a busca por si mesmo, que passa invariavelmente pelo outro – mas o que vem do Outro é sempre brutal e doloroso (dor, insegurança, medo, angústia). O próprio espelho não lhe oferece consolo, devolvendo apenas uma imagem deformada e distorcida. Condição humana?

Os personagens femininos na ópera-rock FRANKENSTEIN

 

Chama a atenção, no livro FRANKENSTEIN de Mary Shelley, o quanto a obra é masculina (poder-se-ia quase dizer que se trata de um mito que fala do encontro – e desencontro – do masculino). As poucas mulheres que aparecem na história (escrita em 1817-18, ainda na Inglaterra pré-Vitoriana) são bastante conformadas e submissas. Foi uma das liberdades que tomei ao escrever o libreto da ópera: mesmo não escapando aos seus trágicos destinos, essas mulheres ganham voz e se rebelam. Elisabeth, noiva de Victor Frankenstein (interpretada pela soprano Carla Domingues), em vários momentos acusa e enfrenta duramente seu futuro marido, bem como seu sogro, e não se submete ao papel que tentam lhe imputar; ao saber da Criatura, pede por sua cabeça servida numa bandeja de prata – alusão a Salomé.

 

Justine (interpretada pela soprano Masami Ganev), amiga da família e que será injustamente condenada à forca por ter supostamente assassinado o irmão menor de Victor, antes de morrer se dirige à multidão de homens, que exige sua morte chamando-a de bruxa e de assassina (razão pela qual optei por um coro masculino), sendo nesse momento apoiada por Elisabeth (um dueto no qual ambas demonstram seus potentes agudos): “Vocês são homens cruéis, estúpidos e brutais. Vocês chamam de bruxaria tudo que não podem entender, tudo que não podem suportar, tudo que não podem amar. Bruxas são suas esposas e irmãs, bruxas são suas mães e filhas. Bruxa é a parte feminina de vocês mesmos, a parte que não querem ver nem reconhecer. Vocês nos matam porque têm medo; vocês nos torturam porque são covardes; vocês nos envergonham porque são fracos.”

 

E temos ainda Agatha (interpretada pela soprano Claudia Ondrusek), filha do cego De Lacey, que lê/canta para seu pai o famoso monólogo de Ricardo III (Shakespeare), momento no qual a Criatura, que observa a cena desde um esconderijo, se identifica com o que ouve. Ela não compartilha da piedade de seu pai pela Criatura e a expulsa da casa ao descobri-la.

Referências, alusões e citações na ópera FRANKENSTEIN

 

Transformar uma obra literária numa ópera implica escolhas e opções. De forma geral, fui bastante fiel ao original de Mary Shelley. Mas “ser fiel” não significa copiar e colar nem tampouco seguir burocraticamente um roteiro: para mim, significou mergulhar no original dialogando criativamente com ele, aprofundando e amplificando sentidos a partir de referências identificadas no próprio texto.

 

A cada leitura do livro, novos aspectos foram surgindo, seus muitos subtextos e influências ficando mais evidentes – influências que vão de Shakespeare a Goethe, de Milton a Byron. Por que então não incluir trechos dessas obras no libreto? Diálogos dentro de diálogos, vozes ocultas, referências sutis (outras nada sutis). Afinal, o corpo da Criatura é feito de partes, fragmentos; a unidade que daí decorre é uma unidade estranha, e nesse aspecto nos descobrimos todos mais ou menos na mesma situação que ela: não somos transparentes a nós mesmos como queria Descartes; não nos conhecemos, não temos certeza quanto a quem somos, de onde viemos, para onde vamos. Somos um eu frágil perpassado por infinitos não-eu: habitados pelo estranho, pelo desconhecido, pela alteridade; somos incessantemente atravessados pela cultura, pela língua, pelo Outro.

 

Ao longo do libreto uso mais de sessenta citações e alusões: Shakespeare (A Tempestade, Ricardo III, Othello), Goethe (Fausto), Byron (Manfred), Conrad (No Coração das trevas – e sua adaptação para o cinema em Apocalipse Now), Melville (Moby Dick), Kafka (Aforismos), William Blake (As bodas do céu e do inferno), James Joyce (Ulysses), Homero (Odisseia), Borges (A biblioteca de Babel), Nietzsche (Zarathustra), Oscar Wilde (Salomé), Guimarães Rosa (Grande Sertão: Veredas) e vários outros, aludindo até um trecho de Blade Runner. Histórias dentro de histórias: labirintos.

A cena do enforcamento

 

Na ópera-rock FRANKENSTEIN o primeiro ato termina com o julgamento e posterior enforcamento de Justine (interpretada pela soprano Masami Ganev), injustamente condenada pelo assassinato do jovem irmão de Victor Frankenstein, William (morto pela Criatura – que incriminou Justine deixando junto ao corpo um colar que pertencia a ela). A multidão enfurecida (composta por homens) clama pela forca chamando-a não apenas de assassina, mas também de bruxa. Para compor essa cena, pesquisei vários relatos de julgamentos (também de julgamentos por acusação de bruxaria) e inseri no texto algumas das últimas palavras de condenados à morte – palavras cantadas por Justine antes de sua execução, sempre intercaladas por trechos onde o coro a confronta e continuamente a acusa.  

 

 “Sou uma bruxa tanto quanto vocês são feiticeiros, e se tirarem minha vida, Deus lhes dará sangue para beber” (últimas palavras de Sarah Good antes de ser executada por bruxaria em Salem, Massachusets, em 1692).

 “Ouçam-me, homens de violência; pena de morte é assassinato, portanto os assassinos aqui são vocês, não eu! Vocês se vêem como “pessoas de bem”, e pessoas de bem estão sempre tão certas de terem razão... Mas vocês não estão!” (últimas palavras de Robert Drew antes de ser executado em 1983).

“Estou prestes a morrer por um crime que não cometi, que outra pessoa cometeu. Eu sou inocente, inocente, inocente! Não se enganem quanto a isso! Não devo nada à sociedade; sou uma mulher inocente e algo muito errado está acontecendo aqui esta noite” (últimas palavras de L. Herrera antes de ser executada em 1993)

 “Eu não os perdôo – e espero que Deus também não (referência inexata).

 

Aproveitei essa cena para ressaltar as constantes violências e injustiças sofridas contra as mulheres; ainda nela, Elisabeth (interpretada pela soprano Carla Domingues) se junta a Justine e ambas cantam: “Vocês são homens cruéis, estúpidos e brutais. Vocês chamam de bruxaria tudo que não podem entender, tudo que não podem suportar, tudo que não podem amar. Bruxas são suas esposas e irmãs, bruxas são suas mães e filhas. Bruxa é a parte feminina de vocês mesmos, a parte que não querem ver nem reconhecer. Vocês nos matam porque têm medo; vocês nos torturam porque são covardes; vocês nos envergonham porque são fracos”.

Sobre a arte gráfica

 

A identidade visual da ópera-rock FRANKENSTEIN foi desenvolvida pelo artista Celso Silva da Silva. A opção por uma arte abstrata teve como principal objetivo instigar o público a pensar num Frankenstein diferente daquele do cinema de terror, apontando antes para o sentido profundamente existencial do livro de Mary Shelley. Ou seja: queríamos fugir das letras góticas, do verde, dos parafusos no pescoço, da testa alta cheia de cicatrizes.

 

O ponto de partida de Celso foi um cubo no espaço (representando, para ele, a solidão da criatura). Depois, esse cubo gerou um segundo, menor e deslocado (criador e criatura, novo ser feito “à imagem e semelhança” mas que, de certo modo, promove desencontro e descentramento). O raio que os atravessa é a eletricidade que dá corpo à criatura – aqui estilizado quase ao ponto de se transformar numa agulha: a agulha que costura as diversas partes, agulha que pode furar-ferir ou costurar-criar.

 

As cores são importantes: temos o branco do gelo e da neve (a obra começa e termina no Polo Norte), o negro do sombrio e do misterioso, o vermelho do sangue, o amarelo da criação. Mas mais importante que isso, essas cores remetem às quatro fases descritas pela alquimia, conhecimento fundamental para que Victor Frankenstein dê vida à sua criatura (a medicina tradicional não lhe é suficiente para alcançar seus objetivos: ele lança mão da alquimia e, tal qual o Fausto de Goethe, também da magia). Na alquimia, a obra (o Opus Alchemicum) passa por quatro estágios ou operações: NIGREDO (ou operação negra), ALBEDO (ou operação branca), CITRINITAS (ou operação amarela) e finalmente RUBEDO (ou operação vermelha). Criação, transformação, nascimento e morte: vida.

 

Por fim, a linguagem abstrata também nos remete ao estilo escolhido para esta montagem: um estilo moderno e não tradicional. Mesmo que a história descrita por Mary Shelley esteja ambientada entre final do século XVIII e início do século XIX, optamos por cenografia e figurinos que não fixam nenhuma temporalidade específica: ficamos no campo da fábula, do mítico, do onírico. 

FRANKENSTEIN: uma obra amoral?

 

Nas diversas adaptações de Frankenstein (especialmente para o cinema) vê-se frequentemente roteiristas e diretores tomando partido no duelo entre criador e criatura, ora transformando a Criatura em vilão (e consequentemente o Dr. Frankenstein em vítima), ora o contrário (o médico como o algoz e a Criatura como vítima). Afinal: qual dos dois representa o bem, qual representa o mal? Em seu livro, Mary Shelley tem a coragem de não optar: ambos –­ criador e criatura ­­– buscam (e perdem), ambos sofrem, ambos erram, ambos caem. Muitas são as razões que os levam a fazer o que fazem (razões humanas, demasiadamente humanas), a maioria delas bastante compreensível. Mas em dado momento, limites são transpostos, inocências são perdidas (a queda inevitável do paraíso – tema forte no livro, presente em várias citações da obra máxima de Milton, “Paraíso Perdido”). A mesma ousadia criativa e ambição que levam Victor a vencer a morte tornam-se sua cruz; mas em momento algum do livro Mary Shelley transforma isso em “lição de moral”, do tipo “vejam o que acontece quando não impomos limites à nossa ambição”. O livro se coloca ousadamente para além (ou aquém) da moral: não há bons e maus nesta história, não há mocinhos nem bandidos; no lugar do branco e preto, um cinza nebuloso de ações e consequências que vão tomando dimensões trágicas.

 

Por isso, em dado momento do libreto faço o Capitão Robert Walton perguntar a Victor Frankenstein: “Há alguma moral nessa sua história?”, e Victor responde “Não, não há nenhuma moral aqui, apenas o passar do tempo: futuro virando passado, vida virando morte, sonhos virando pó”.

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